O cinema
pode, portanto, viver sem a literatura. Se bem que o documentário seja
geralmente narrativo, a narração é que nasce do desbobinar do filme e não êste
do modo literário de contar. O filme longo também tem vivido, por vezes, à
margem de qualquer argumento, e isso mesmo nos casos em que se não aproxima
nada do documentário ou da panorâmica.
Tôdas as
tentativas de cinema "da vanguarda", ou quási tôdas, pretendem
submeter a acção literária a uma acção puramente cinemática. Ritmo, movimento,
ângulos, luz (e hoje já podemos acrescentar som e côr), eis os elementos que
bastam ao cinema. Mas o certo é que a literatura intervém, em grande
percentagem, em quási todos os filmes, porque tão apetecíveis são as
remunerações percebidas pelos autores que estes se começaram já a dedicar
inteiramente à construção duma literatura sincopada, rítmica, em suma,
cinematográfica.
Na
generalidade, o filme longo conta uma história. Com uma fôrça expressiva mais
intensa que a de qualquer outra arte, e com um âmbito de acção incomparável,
são de aplicar ao argumento cinematográfico, com a maior firmeza, os principios
sociais da literatura. Porque se uma má novela pode influenciar dez mil
leitores, sabemos todos que o filme dessa novela extraído conduzirá a falsas
ideias dez milhões de espectadores. De tôda a literatura côr de rosa, por
exemplo, se fizeram centenas de filmes que criaram ambiente especial e
pretendem amoldar a moral à sua ausência de conceitos.
Exibiram-se
recentemente em Lisboa dois filmes, "A Mulher dos Cabelos Vermelhos"
e "Ali-Baba e os quarenta ladrões", ambos de argumento falso. Porém,
só se torna prejudicial o do primeiro. A vida, nesses filmes, é puramente
fictícia, e se o espectador sabe que no "Ali-Baba" assiste a um conto
das mil e uma noites, padrão máximo da fantasia, no outro filme é forçado à
compaixão pela heroína atravez de algumas cenas de amôr maternal, aceitando
assim um modo de agir absolutamente ilógico e aprovando atitudes claramente
disparatadas.
Sem a
consciência firme dos modos de acção e de reacção do homem, ainda que complexo
e contraditório, o espectador é levado, por caminhos errados, à compreensão da
vida. Uma humanidade torcida é o produto dessa interpretação falsa. A história
real, humana, brotada e não construída, isto é, o bom argumento, tratado depois
com a técnica maravilhosa dos homens de Hollywood, será um bom filme, mas só
assim.
Ao cinema não
é necessária a literatura para que o seja. Mas se o filme conta uma história,
pedimos-lhe não só as virtudes da cinematografia como também as essenciais
virtudes da literatura
JORGE PELAYO
0 comentários:
Enviar um comentário