segunda-feira, 9 de julho de 2012

Argumento, factor de bom cinema

HESITO antes de me referir às diferenças específicas entre cinema e literatura. Não só tem sido matéria tratada por muitos publicistas, como também qualquer pessoa medianamente culta sabe que, por mais reais que se nos mostrem os vínculos ligando duas artes, estes são sempre aparentes.

O cinema pode, portanto, viver sem a literatura. Se bem que o documentário seja geralmente narrativo, a narração é que nasce do desbobinar do filme e não êste do modo literário de contar. O filme longo também tem vivido, por vezes, à margem de qualquer argumento, e isso mesmo nos casos em que se não aproxima nada do documentário ou da panorâmica.

Tôdas as tentativas de cinema "da vanguarda", ou quási tôdas, pretendem submeter a acção literária a uma acção puramente cinemática. Ritmo, movimento, ângulos, luz (e hoje já podemos acrescentar som e côr), eis os elementos que bastam ao cinema. Mas o certo é que a literatura intervém, em grande percentagem, em quási todos os filmes, porque tão apetecíveis são as remunerações percebidas pelos autores que estes se começaram já a dedicar inteiramente à construção duma literatura sincopada, rítmica, em suma, cinematográfica.

Na generalidade, o filme longo conta uma história. Com uma fôrça expressiva mais intensa que a de qualquer outra arte, e com um âmbito de acção incomparável, são de aplicar ao argumento cinematográfico, com a maior firmeza, os principios sociais da literatura. Porque se uma má novela pode influenciar dez mil leitores, sabemos todos que o filme dessa novela extraído conduzirá a falsas ideias dez milhões de espectadores. De tôda a literatura côr de rosa, por exemplo, se fizeram centenas de filmes que criaram ambiente especial e pretendem amoldar a moral à sua ausência de conceitos.

Exibiram-se recentemente em Lisboa dois filmes, "A Mulher dos Cabelos Vermelhos" e "Ali-Baba e os quarenta ladrões", ambos de argumento falso. Porém, só se torna prejudicial o do primeiro. A vida, nesses filmes, é puramente fictícia, e se o espectador sabe que no "Ali-Baba" assiste a um conto das mil e uma noites, padrão máximo da fantasia, no outro filme é forçado à compaixão pela heroína atravez de algumas cenas de amôr maternal, aceitando assim um modo de agir absolutamente ilógico e aprovando atitudes claramente disparatadas.

Sem a consciência firme dos modos de acção e de reacção do homem, ainda que complexo e contraditório, o espectador é levado, por caminhos errados, à compreensão da vida. Uma humanidade torcida é o produto dessa interpretação falsa. A história real, humana, brotada e não construída, isto é, o bom argumento, tratado depois com a técnica maravilhosa dos homens de Hollywood, será um bom filme, mas só assim.

Ao cinema não é necessária a literatura para que o seja. Mas se o filme conta uma história, pedimos-lhe não só as virtudes da cinematografia como também as essenciais virtudes da literatura

                                                                         JORGE PELAYO                              

               in  Revista "Filmagem", nº 3, 18 de Janeiro de1945, pág. 9

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